quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A denúncia da ambição e crueldade humanas na obra-prima de Miasaki

O que é uma princesa? Melhor dizendo, o que é uma imagem de uma princesa? Em relação a cultura ocidental, na qual a imagem eurocêntrica ocupou mesmo os mais ínfimos espaços, a princesa provavelmente está relacionada a outras imagens, como monarcas, castelos, coroas, quem sabe séquitos e belos vestidos (e penteados). Mas o que esperar de uma princesa em um filme de Hayao Miasaki, gênio absoluto da animação japonesa? Possivelmente, algumas das sutilezas das obras de Miasaki se perderão para sempre diante de nossos olhos ocidentais. Afinal, suas imagens não são realizadas para nós e muito menos a partir de padrões visuais semelhantes aos nossos. Por isso mesmo, nosso acesso a seu mundo é, infelizmente, sempre deficitário, mesmo para o mais aficcionado e especializado dos espectadores da cultura japonesa. Essas sensações são, à primeria vista, reforçadas quando “A Princesa Mononoke” (Mononoke Hime, JAP, 1997) nos bombardeia até nos embriagar com suas imagens.
Exibido recentemente pela HBO em um festival dedicado a carreira do cineasta japonês, o filme é um desestabilizante encontro espectador-imagem e promove uma revolução em nossas pobres expectativas ocidentais. Primeiro, a princesa do título só aparecerá na metade dos 130 minutos do filme. Antes o enredo se concentrará em uma distante aldeia de camponeses que enfrenta um deus enfurecido na forma de um javali gigante (!). Nessa ocasião, o jovem herdeiro daquele clã será amaldiçoado, aparentemente sem chances de reverter o seu terrível destino: agonizar devido a doença a devorar seus ossos. Como única tentativa para sobreviver, o sereno e resignado herói parte para as terras do mais extremo leste, de onde o deus viera, na busca de um antídoto que, em realidade, sequer sabe se existe. É lá que, após muitas peripécias, inclusive o encontro com belos elementais da floresta, samurais mal intencionados e um sacerdote de intenções dúbias, que Mononoke surgirá. Sua primeira aparição é um choque por si só, seu rosto ensanguentado após sugar a ferida de uma deusa loba, a fim de salvar aquela que é sua mãe adotiva. Os deuses lobos, em extinção (!!) devido a ocupação da floresta pelos homens são agressivos e impiedosos e sua missão é evitar a destruição final da floresta. Para isso, investem periodica e inutilmente contra os trabalhadores de uma fábrica de fundição de ferro, cuja existência trará consequências desastrosas para o meio-ambiente.
Percebemos os mesmos elementos de outros filmes de Miasaki, a denúncia da destruição do meio-ambiente (como em Meu vizinho Totoro, Nausicaa e Ponyo) e a entrada em um mundo mágico onde as regras são outras e humanos e seres mágicos convivem conflituosamente (A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado). Mas nesse filme em questão, o poder de alguns desses elementos alcança um sofisticado patamar. A ambivalência dos personagens, por exemplo, comum em outros exemplares da carreira de Miasaki, encontra um ápice na fortíssima personagem feminina, Lady Eboshi, dona da casa de fundição. Espécie de Fausto de saias, sua ambição e força de espírito são incontroláveis, contribuindo de maneira irreversível para que a trama avance para um desfecho caótico. A alegoria em relação à sanha destrutiva do homem em relação ao meio ambiente também é elevada a nona potência pela criação de um mundo onde nem os deuses estão imunes ao desejo de destruição humana. Inclusive, a caça do Deus-veado, o elegante e misterioso elemental-mor da floresta, híbrido típico de Miasaki, metade Gamo, metade não-sei-o-quê, com um sábio e sereno rosto que lembra o de um velho, é o McGuffin da trama. A decapitação e a consequente captura da cabeça do deus garante ao seu portador a imortalidade. Antiga ambição fáustica humana, transformar tudo a sua volta, mesmo que para isso precise destruir, e viver para sempre, sobrevivendo ao próprio caos transformador que ele mesmo perpetra, elevando o homem a categoria das coisas imutáveis. Como representado na alegoria do troféu em forma de cabeça divina, que permitiria-lhe colocar-se acima da natureza e dos próprios deuses.
Mononoke e o “príncipe” camponês Ashitaka, ele uma espécie de mediador universal entre o mundo dos homens e o mundo dos deuseus e florestas, idealizado e nobre, como não poderia deixar de ser, se unirão nessa batalha de proporções épicas. Embora os lados que defendem estejam sempre a ponto de se imiscuir e em realidade o espectador não saiba em determinados momentos para quem torcer. A inocência, determinação e doçura de Mononoke roubam a cena após a sua primeira aparição, mesmo que, em parte do tempo, seu rosto esteja coberto por uma temível máscara, que simboliza a sua parte animal, que ela quer mais evidente, deixando-a mais próxima da natureza que da humanidade. Personagem trágica e extremamente forte, de maneira similar, aliás, às outras personagens femininas, guarda a peculiaridade fatal de estar no meio do caminho entre o natural e o humano não sendo totalmente aceita nem por um, nem pelo outro. O que está sintetizado na frase: “Oh, tão bela e horrível princesa lobo”, pronunciada por sua mãe, a Deusa-lobo, que fala com voz de uma sábia anciã e que usará o último suspiro de sua espécie para destruir os desejos humanos, de preferência estraçalhando qualquer um que atravesse seu caminho.
Um intricado jogo de xadrez que embaralha, ao ponto da exaustão, as regras do jogo à medida que os lances são realizados até um final, no mínimo, apoteótico, Princesa Mononoke é uma obra-prima da animação adulta cuja complexidade, nós, ocidentais, só podemos arranhar. As suas imagens, como de outras obras-primas do Animê, como Akira (JAP, 1987), tentam sempre nos fugir, seja pela sua estranheza ou o seu enigma, e temos que simplesmente agarrá-las, nem que seja para cairmos estupefatos diante suas “belas e horríveis” paisagens, jogos visuais, personagens e alegorias. Viva, portanto, Hayao Miasaki!!

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