terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A sede de aventuras de Spielberg encontra em Tintim uma nova aposta

Uma homenagem com pleno frescor e algumas doses de ironia. Assim soa “As Aventuras de Tintim” (The adventures of Tintim: the secret of Unicorne, EUA, 2011), a animação que inaugura a entrada de Steven Spielberg na técnica de captura de movimento dos atores. Tentada, sem muito eficácia, por Robert Zemeckis (Expresso Polar, Beowulf), o recurso encontra uma consecução bem-sucedida nessa adaptação dos quadrinhos de Hergé para o cinema. E é justamente, o quadrinista belga o grande homenageado por esse filme, em que Spielberg não perde a chance, naturalmente, de se auto-homenagear.
O longa já valeria a pena simplesmente por sua sequência inicial. Os créditos, praticamente um curta independente, são excelentes. No decorrer do desfile tradicional dos nomes, as figuras icônicas ganham vida com poesia e a leveza dos movimentos corporais que roubarão a cena durante o resto do filme nas proezas físicas de Jamie Bell (Billy Elliot, ING, 2000). De maneira semelhante a “Prenda-me se for capaz”, do mesmo Spielberg, que usa um recurso semelhante, os créditos são uma obra-prima a parte. Mas, podemos incluir nessa magistral sequência a primeira piada visual, quando em uma feira, o Tintim vivido por Bell tem seu retrato desenhado por um artista de rua e, voilá, a sua fiel gravura é a materialização dos desenhos de Hergé. Além disso, ao fundo, a riqueza da galeria de personagens somados em décadas de álbuns da hq está pendurada em fileiras formando um grande painel para deleite dos fãs. As homenagens, é claro, não param por aí.
À medida que a narrativa avança, o filme vai se tornando, porém, mais o estilo em que o próprio Spielberg já tinha desenvolvido para interpretar histórias a la Tintim, na série Indiana Jones. A série do arqueólogo mais famoso do cinema, em realidade, não foi inspirada em Hergé, mas ambos - Tintim e Indiana - são resultados da mesma fonte: os seriados de aventura colonialistas da década de 1930. Mas, como já especulavam tanto Spielberg quanto o próprio Hergé, antes deste falecer, o estilo das aventuras de Indiana se adequam perfeitamente às peripécias de Tintim. É como se a estrutura de suas aventuras, na promiscuidade usual da cultura de massa, fossem ligados na carne. Uma estrutura modular ou episódica, em que vários momentos climáticos se sucedem ininterruptamente; os cenários diversos onde a ação se dá, em geral, belas paisagens do “terceiro mundo” – curiosidade, o termo é usado no filme em um anacronismo óbvio, já que a denominação só seria criada em 1955, anos depois da época onde se passa a história; coadjuvantes cômicos de humor e caráter dúbios, etc.
Os personagens principais, contudo, apresentam diferenças evidentes. Apesar dos malabarismos corporais e da engenhosidade pragmática dos “civilizados” que possibilitam a ambos escapar mesmo da mais intricada enrascada, o que não teria sucesso não fossem os inverossímeis golpes de sorte sucessivos, o sedutor arqueólogo se afasta do Tintim de Hergé. O anti-herói que marcou Harrison Ford, Ulisses dos entre-guerras, mestre do ardil, contrasta com o jornalista-detetive politicamente correto ao extremo e exemplo de perfeição de caráter, além de celibatário (!). O que foi preservado fielmente na adaptação de Spielberg. Chega a ser indigesto ao espectador torcer – e se identificar com tal Sr. Perfeição – por isso, é essencial a figura do Capitão Haddock. Alcóolatra, boca-suja e brigão, Haddock é o coadjuvante perfeito, cuja personalidade se tornou indissociável do próprio Tintim. Elemento fundamental para alquimia dar certo e o espectador ser captado. Mas, não nos enganemos, Tintim e Indiana são representantes da cultura pop com um parentesco mais ancestral. Os dois são heróis brancos do colonialismo, dispostos a usar os países e personagens “não-civilizados” como cenário e moldura para suas jornadas que, em geral, sempre confirmam os estereótipos de valorização da cultura ocidental, frente ao exótico e “engraçado”, nem por isso menos “bárbaro”, mundo oriental.
Uma sofisticação visual excepcional atravessa toda essa premissa. Os cenários, detalhísticos e exuberantes, levam a perfeição o estilo Hergé (personagens caricatos – cenários caprichados), o que a, ainda que divertida, série televisiva em animação tradicional, não conseguia. As transições visuais também são um show à parte. De uma sequência para outra, há inusitadas sacadas visuais em que aquela de maior destaque ocorre em pleno deserto. Uma aparente miragem de um grande navio a vela – o Licorne do título original – avança sobre as dunas, que longo se convertem em gigantescas ondas em meio a tempestade. É a apresentação em termos visuais de um vigoroso flashback. Belíssimo. O humor corpóreo dos policiais Dupont e Dupont também é mantido, embora suavizado. Nos quadrinhos, há praticamente uma gag por página para esses coadjuvantes. Louvável, é a manutenção da importância de Milu, o cãozinho fiel do herói, responsável por grandes lances de humor e aventura, preservados no filme. Impossível pensar Tintim sem as artimanhas desse adorável personagem. A necessidade estrutural de Milu para a narrativa funcionar, inclusive, foi o principal motivo que levou Spielberg a não realizar uma adaptação live-action de Hergé e adiar por mais de vinte anos a consecução do projeto.
Os vários detalhes pesca-fã espalhados pelo cenário, que remetem a outras aventuras do personagem, aliam-se a sequências estonteantes de ação. Nelas, Spielberg se auto-ironiza o tempo todo. Simultaneamente, tenta tirar o fôlego do espectador, em uma espiral cada vez mais intensa. O que, no entanto, nem sempre é bem-sucedido. Algumas sequências são divertidas pelo exagero óbvio – como aquela em Tintim deve conseguir uma chave em meio a uma porção de brutamontes sonolentos -, outras são apenas exageradas (como o duelo de “espadas”, feito com guindastes das docas). Mas há pelo menos uma sequência imbatível em seu virtuosismo. É o longo plano-sequência de perseguição, com o consequente estouro da represa. Nele, Tintim, Haddock e Milu precisam arrancar um mapa do tesouro das mãos dos vilões. Só uma desculpa, evidentemente, para uma nova sucessão de piruetas. Uma diferença agora, a sequência inteirinha se desenvolve sem cortes, em um longo travelling, cuja sincronização possivelmente seria impossível em um filme live-action. O cúmulo da sofisticação é que há alguns cortes disfarçados, emulando as limitações técnicas (e humanas) de um filme de película tradicional. Divertidíssima, engenhosa e impressionante, é, sem dúvida, a melhor sequência de ação do filme. Talvez uma das melhores que Spielberg dirigiu desde “Prenda-me se for capaz” (Catch me if you can, EUA, 2002).
Não tão eficiente é a sequência de ação final, anticlimática, que deixa o sabor desagradável na boca, a sensação de que o melhor já ficou para trás. Nela, só uma última auto-paródia merece ser comentada. A sequência icônica em que Indiana Jones, de Os Caçadores de Arca Perdida (The raiders of the lost ark, 1981) enfrenta um hábil espadachim oriental, que demonstra seu talento com a arma, cultivado por anos de treinamento árduo, antes de morrer abatido por um mísero tiro da pistola do herói, é homenageada. A sequência até hoje rende linhas e mais linhas de analistas que a encaram como representação icônica do massacre cruel realizado pelo pragmatismo ocidental frente à beleza das artes orientais. Em Tintim, o Capitão Haddock substitui Indy e a arma de fogo do herói é ironicamente substituída por... garrafas de uísque. Mais uma representação de herói branco que não sabe perder, embora agora a ironia chegue a ser involuntariamente caústica.
Há, certamente, quem se canse das brincadeiras visuais do filme, dos excessos rocambolescos, ou acuse a gratuidade de sequências inteiras. Talvez isso tudo seja verdade. Mas, Tintim do Spielberg pede para ser consumido com olhos de puro deleite e, não pode faltar para isso também doses cavalares de nostalgia. Se juntar, então, um pouco de ironia auto-louvatória, teremos uma fórmula perfeita para apreciar um espetáculo que se quer apenas visual. Que fala mais aos esfíncteres – citando Hitchcock – do que a mente.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Um gatilho que dispara no vazio - a franquia Sherlock patina

A continuação de um blockbuster vem se mostrando algo cada vez mais temerário. Nos longínquos anos 80, existia uma regra, embora forçada como a maioria delas: “a continuação é sempre inferior ao original”. Hoje, após sucessos de crítica e público como Senhor dos anéis – Duas torres, Shrek 2 e Batman - Cavaleiro das trevas, para ficar só nos exemplos mais – como podemos dizer? - movimentados financeiramente, mostram que diferente do se dizia, é, sim, possível superar o primeiro filme. Fazer uma continuação com mais qualidade que o longa inicial necessitaria "apenas" de uma dose cavalar de originalidade, aqui entendida como capacidade de recauchutar velhos elementos, e igualmente partes gigantes de intensidade. Tudo tem que ser magnãnimo e emocionante, só que em um grau maior que o antecessor.
Para seguir essa fórmula, a continuação de um sucesso em Hollywood em geral sofre de megalomania. E, às vezes, essa mania de “querer ser maior que seu par” resulta em fracasso. O problema é que a pressão é tanta, do público, dos bastidores, etc. que algumas das segundas partes das franquias escorregam feio. Gerou-se, assim, dessa verdadeira obsessão em fazer o espectador esquecer a aventura anterior logo na primeira cena, verdadeiros monstros nos últimos anos. Piratas do Caribe 2 e Homem de Ferro 2 são só alguns exemplos. Neles, o descarte dos elementos do original só deixam os longas inaugurais ainda mais insuperáveis. E, infelizmente, mais um caso de fracasso exemplar em dar continuidade a uma série é o de “Sherlock Holmes – Jogo de sombras” (Sherlock Holmes – Game of shadows, EUA, 2012). Só que de um modo peculiar.
O primeiro filme foi uma agradável experiência do cinema de entrenimento: ironia, sarcasmo, cenas de ação estonteantes, efeitos interessantes e uma marcante trilha sonora (de Hans Zimmer, sempre genial!) foram os ingredientes de uma rentável adaptação de um clássico. Apesar da irritação dos puristas, as aventuras do detetive criado por Sir Arthur Conan Doyle ganharam uma nova roupagem, dinâmica e interessante para as novas gerações, cumprindo o que os produtores prometiam. Na direção, um sortudo Guy Ritchie, que após êxitos do início da carreira (Jogos, Trapaças & dois canos fumegantes, Lock, Stock and two smoking barrels, ING, 1998, por exemplo) tinha assumido produções pífias e quase foi lançado ao ostracismo. Ritchie impôs um ritmo excepcional ao filme, sendo inegavelmente um dos responsáveis por seu estrondo nas bilheterias. Simultaneamente, não abriu mão das suas idéias, meio caminho entre avant-garde e a estética do vídeo, abusando de movimentos de câmera vertiginosos e cortes de imagem abruptos, além de saltos no interior da narrativa e flashbacks sem sobreaviso. O primeiro filme, portanto, mereceu de fato o título de arrasa-quarteirão.
O mesmo não acontece com essa sequência. Primeiramente, não reage frente ao pêndulo sobre a cabeça de qualquer continuação, não há mais sabor de novidade. Todo o frescor visual da Inglaterra vitoriana steampunk do filme anterior se perdeu e chegou até mesmo a converter-se em uma Londres simplesmente caótica e escura. As cenas de ação contentam-se na repetição dos esquemas e truques visuais de seu predecessor dando a inescapável sensação de dejà vu. Volta aqui, inclusive, um recurso típico dos quadrinhos – presente quando o Batman de Frank Miller, por exemplo, antecipa os passos dos seus combatentes, em um raciocínio lógico-dedutivo contando sempre com o melhor lance do adversário, como no xadrez. A idéia era transformar isso em uma marca da série. Infelizmente consegue ser apenas “mais do mesmo”. Um outro exemplo a citar é a sequência da explosão nas docas, repetida aqui em uma fuga diante dos temíveis canhões alemães pré-primeira guerra. Os mesmos silvos de balas, câmeras em still, slow motion e o zumbido ensurdecedor estão ali. É a melhor cena de ação do filme, mas falta algo... Ah, já sei, é a novidade.
O roteiro também deixa a desejar. O problema é mais evidente no tratamento dado a coadjuvante Zimsa, uma cigana vivida pela excelente Noomi Rapace, do filme sueco “Os Homens que não amavam as mulheres”. Se na série baseada nos romances de Stieg Larssom, ela é enigmática e sensual, aqui ela só é insossa. Responsabilidade exclusiva do roteiro, que deixou a personagem completamente deslocada o filme todo. Uma bela inútil, incapaz de substituir a altura as artimanhas de Irene Adler, personagem interpretado por Rachel McAdams, o interesse amoroso de Holmes do Sherlock de 2009. Infelizmente, sem maiores justificativas, Irene é assassinada logo nas primeiras sequências de “Jogo das sombras”. Se essa eliminação inexplicável de uma personagem tão interessante é uma tentativa de romper com o desenvolvimento da história anterior, suspendendo e redirecionando as expectativas, falha miseravelmente. E, diante da inepcia da cigana de Rapace, a ácida McAdams faz muita falta.
Mas o filme guarda alguns trunfos. Os principais são os personagens diretamente adaptados da literatura de Doyle. Um deles é Mycroft Holmes, o irmão mais esperto de Sherlock Holmes, aparece aqui na pele do sofisticado Stephen Fry. E, embora o nível de sarcasmo e ironia mordaz já seja bastante alto desde o episódio anterior, o ator consegue ser um divertimento a mais. O outro, é claro, é James Moriarty, vivido magistralmente por Jared Harris. Grande vilão do universo sherlockiano, o genial arquiinimigo do detetive possibilita o conflito mais cerebral do cinema de entretenimento dos últimos 30 anos. Como, uma vez mais, em uma partida de xadrez, até de modo literal, os dois, Sherlock e Moriarty, antecipam seus melhores lances o tempo todo, dando vida a um conflito que já se tornou clássico em várias mídias, na literatura, no cinema e nos quadrinhos.
E é nisso, porém, que está o grande problema. As platéias novas dificilmente se empolgarão com o jogo de pistas falsas e raciocínios premonitórios, quase sobrenaturais, dos dois personagens, calcados diretamente da literatura e dos filmes clássicos, preferindo algo mais visceral. As platéias antigas, que já têm uma pulga atrás da orelha com este Holmes “pós-moderno”, não serão atraídas por uma condução desses conflitos competente - mas não genial, é preciso dizer de passagem - , quando têm disponível em DVD os embates vivicados por Basil Rathborne, o mais representativo dos Sherlocks entre os cinéfilos. E até as metáforas enxadrísticas são óbvias demais, ainda que divertida para os fãs das histórias de Doyle, ao menos aqueles mais desprendidos. Nesse sentido, na ausência de um final-surpresa, um whodunit (quem matou) ou coisa que o valha, o filme não consegue cativar o espectador por muito tempo e, infelizmente, as disputas intelectuais Holmes-Moriarty na sua versão videoclipe encontrarão poucos admiradores.
Desse modo, não se agrada nem os jovens, nem os fãs antigos. E o filme fracassa como continuação. Nem mesmo o cada vez mais notório fascínio, quase fetichista, do diretor por armas prenderá os famintos por ação. De que adianta que cada gatilho disparado seja uma festa de fogos de artíficio com faiscas, supercloses em engrenagens e roldanas em slow motion? O celebrado orgasmo formal dessas cenas soa vazio se o elemento humano e conceitual que faz com que torçamos pelos protagonistas nas cenas de ação é deficitário. Cenas como a do assassino cossaco dentro do cassino simplesmente não funcionam. Nesse sentido, como representante do gênero ação, ainda que vez por outra mostre-se razoável (a sequência dos canhões alemães, por exemplo), o filme sofre em comparação ao primeiro, e, é preciso admitir, também fracassa nesse quesito. Repetitivo e estéril nas cenas de adrenalina, talvez o filme ainda empolgue pelo humor. Sequências inteiras de ação, em realidade, são dedicadas apenas ao humor, beira-se até a gratuidade. Um exemplo é a primeira de todas, quando Downey Jr. é obrigado a enfrentar uma gangue de biltres sozinho. Ou a cena do trem, com Downey travestido em roupas femininas e maquiagem borrada Mas, mesmo nesse ponto, balanço final não é totalmente positivo e esse novo Sherlock é definitivamente um filme desequilibrado.
Para felicidade dos detratores da franquia, que nunca toparam um Watson tão ativo quanto o de Jude Law, preferindo a versão preguiçosa e bonachona dos filmes clássicos. Muito menos, um Holmes de Downey Jr. tão ocupado em parecer um super-herói nas lutas ou um astro de rock precisando de uma rehab nas demais cenas. E muito menos, aceitam de bom grado as insinuações homoeróticas entre Watson e Holmes, cada vez mais evidentes, ao menos nesse roteiro. “Sherlock Holmes” pode até sobreviver como franquia em um terceiro ou quarto episódios, mas, para isso, será preciso uma reformulação urgente. Certamente, ela virá, isso é inevitável. Talvez com o corte de algumas cabeças, - te cuida, Guy Ritchie! -  mas virá!

sábado, 14 de janeiro de 2012

O filme de ação é renovado em Missão Impossível 4

Como renovar um gênero cinematográfico? Ainda mais o combalido gênero de ação hollywoodiano? Anos a fio de excessos pareciam ter deixado pouca margem para a inventividade – com louváveis exceções - nos filmes desse tipo na produção norte-americana. Mas eis que “Missão: impossível – O protocolo fantasma” (EUA, 2011) veio nos mostrar que a renovação não só é possível como não deve sacrificar a estrutura consagrada desse tipo de filme e muito menos a diversão do espectador.
E a surpresa, para pasmo geral, surge logo na franquia “Missão: impossível” que sempre demonstrou resultados tímidos, ao menos em termos de qualidade, mesmo quando os habilidosos Brian De Palma e John Woo estavam na direção. O filme de estréia da série criou uma cena icônica, com Tom Cruise pendurado por cabos e de braços abertos em uma operação perigosa e delicada. Uma sequência que se tornou uma marca registrada, junto a tradicional e imbatível música de abertura, herdada do seriado que emprestou o nome ao longa. Parodiada a exaustão por comédias e animações, a sequência, aliás, também é auto-citada em Protocolo..., com Jeremy Renner substituindo Cruise. Mas a trama confusa e os efeitos de câmera de De Palma não garantiram ao filme exatamente o título de “memorável”. Em realidade, a premissa básica do seriado, a equipe de espionagem, era destruída pelo roteiro para, em seu lugar, estabelecer um filme de ação a mais escorado no chamado “exército de um homem só”, no caso Ethan Hunt, um Cruise, na época, 1996, recém ingresso no cinema de ação. Do seriado mesmo, só os acordes inesquecíveis.
Do segundo filme, então, nem se fala. John Woo prestou, em Hong Kong, contribuições significativas ao cinema capa espada (“A Jugular blindada”, 1979) e revolucionou o filme de ação urbano (“Fervura máxima”, 1992). Mas se ele dirigiu filmes de qualidade nos EUA, como “A Outra face” (The face off, EUA, 1997), com Nicolas Cage e John Travolta, não deu a mesma sorte na franquia-veículo de Cruise. Apesar de ter abalado a bilheteria e ter sua competência reconhecido pela crítica, as sequências de Woo em MI-2 são exageradas, até para os padrões de filmes de ação, padecem dos clichês mais absurdos do gênero e com um duelo final rísivel. Esse clímax merece um comentário a parte. Cruise e o vilão jogam a moto um contra o outro, não sem antes acelerar em desafio, para depois, inexplicavelmente, antes do choque fatal, saltarem a vários metros de altura para se engalfiharem em pleno ar. Uma cena cujo virtuosismo soa tão rídiculo que chega a dar náuseas. Sem falar no excesso de perfeição do personagem de Cruise. Como temer pela vida de um personagem que nunca erra?
Mas ambos os filmes foram grandes sucessos de público e garantiram a sobrevivência da série. Diferente do que aconteceu com o Missão Impossível 3, dirigido pelo aqui produtor Abrams, que é melhor nem comentar. Seu fracasso deveria garantir o engavetamento da série, certo? Errado e o que esse quarto desenvolvimento  vem provar é que seus criadores estavam com toda razão em não extingui-la. Aos esforços de J. J. Abrams, produtor da série Lost e diretor do ótimo “Super-8”, soma-se o talento de Brad Bird, o gênio visual por trás de “Os Incríveis” e “Walle” da Pixar. Resultado: o produtor Cruise provou que ainda era possível elaborar um filme de franquia de qualidade irretocável. Primeiro, por resistir ao óbvio. O cinema de ação dos últimos anos, tem se pautado pela técnica do Gun-and-run. Nela, uma imagem suja e tremida, acompanhada de movimentos de câmera nervosos, principalmente com o dispositivo manipulado nas próprias mãos dos cinegrafistas, sem tripés ou suportes, buscam forjar uma sensação de realidade. A idéia, que se tornou marca das cenas de ação, é aproximar-se das cenas reality dos programas jornalísticos de tv, que permitem acompanhar o policial comum e seu cotidiano.  Apesar do resultado potente nas mãos de Paul Greengrass, vide os ótimos “Supremacia Bourne” e “Ultimato Bourne”, a técnica caminhava para o perigoso clichê, tornando-se uma fórmula e apresentando inevitáveis sinais de desgaste. Um exemplo negativo é o apenas razoável “007 - Quantum of Solace”, que ao tentar atualizar a franquia de James Bond, quase matou o personagem, descaracterizando-o. Desse modo, resistir a tentação da câmera não mão em fúria é a primeira tarefa do filme de ação recente.
“Protocolo Fantasma” realiza isso de forma magistral. Os planos são limpos, a câmera é mais clássica, o eixo não varia para ângulos absurdos a cada segundo, o que chega perto de gerar uma lesão no pescoço do espectador, naqueles momentos elevado a condição de contorcionista. Em compensação as sequências de ação de MI-4 são extremamente eficientes em criar tensão. Graças a direção segura de Bird e a atmosfera carregada que ele engatilha desde a primeira cena. E ainda há tempo para citar sequências dos filmes anteriores. A gratuita escalada à mãos livres de Cruise no início do filme de John Woo é transformada em uma sequência de fõlego completamente novo, quando o agente Ethan Hunt tem que repetir o feito no edíficio mais alto do mundo, um hotel todo revestido em vidro localizado em Dubai. Frisson e um humor inteligente recheiam a cena. A clássica perseguição de gato e rato entre o herói e o vilão por vários meios, a pé e de automóvel, ganha uma emoção a mais por uma improvável tempestade de areia. Agora imagine repetir o desafio suicida do veículo em direção a outro, com um agravante, visibilidade zero. Com isso, a sequência de John Woo no episódio 2 transforma-se de fato em uma brincadeira de mau-gosto. E mesmo o recurso as inverossímeis máscaras, que transformam um personagem em outro, usado a exaustão nos exemplares anteriores, e copiado em “As Panteras”, recebe uma menção, criando uma expectativa para ser, em seguida, completamente descartado. E, logo adiante, reaproveitado, ainda que de forma disfarçada, sempre jogando com nossas expectativas. Isso tudo só contribui para satistação do espectador que não deseja que sua inteligência e bom senso sejam postos no liquidificador da ação e moído junto com os ossos e tendões dos personagens.
Dois elementos-chave dos filmes de ação estão presentes em sua forma clássica, mas são trabalhados de maneira extremamente convincentes no filme. Primeiro, a ação em diferentes cenários, no caso aqui, países. Moscou, Dubai e Bombaim não são só pano de fundo, mas se tornam componentes fundamentais das perseguições, elevados da condição de cenário gratuito e justificando-se em sua existência. Em seguida, os feitos espetaculares do herói – ou dos heróis – tornam-se ainda mais impressionantes justamente porque não escondem a fragilidade humana de seus perpetradores perante os desafios. Cruise hesita em se jogar de um prédio em uma lata de lixo, Jeremy Renner – excelente, talvez um substituto para o cinquentão Cruise nos próximos episódios da franquia? -  literalmente treme os joelhos ao se ver obrigado a se atirar em um ventilador gigante e sem contar Simon Pegg, o coadjuvante cômico perfeito, que, apesar do medo, enfrenta situações de perigo com desenvoltura.
Por outro lado, dois elementos que são parcialmente responsáveis pelo ódio que as pessoas depositam sobre o gênero estão totalmente ausentes. O mata-mata incontrolável de filmes fundadores como “Rambo” não tem mais razão de ser. Os heróis só matam em legítima defesa ou em último caso. Nesse filme, Ethan Hunt praticamente não mata ninguém, sequer por esses nobres motivos e quase pede desculpas quando é obrigado a quebrar o nariz de um policial que quer prendê-lo. Em último lugar, o machismo chauvinista de um 007, por exemplo, não encontra espaço. A bela Paula Patton é uma agente tão durona quanto sensual, que jamais se põe no papel da mocinha que precisa ser resgatada e nem precisa relacionar-se sexualmente com o persoangem principal para ter alguma importância na trama – embora um leve flerte não faça mal. Para completar, Hunt, apaixonado pela esposa desaparecida, é o oposto do herói mulherengo a lá Bond.
Somadas a tudo isso ainda há um componente fundamental da série de televisão, que retorna com força total. Trata-se do ideal de equipe, abandonado desde o primeiro filme. As rocambolescas cenas de ação, agora em colaboração, só ganham em verossimilhança, além de receber cargas renovadas de dinamismo, clareza e humor. Estamos distantes dos bocejos sonolentos frentes a próxima proeza desse indíviduo brilhante que resolve a guerra sozinho, como em muitos filmes do tipo. Há até mesmo um colóquio final dos heróis que reforçam seus laços de amizade, lamentam as derrotas e comemoram as eventuais vitórias, fazendo um balanço final da aventura. Há quanto tempo não se via isso em Hollywood? Privilégio de um filme claramente estruturado em duas partes, como se estivessemos assistindo dois episódios de cerca de uma hora cada do seriado clássico. No primeiro, o espectador é seduzido, arrastado e submetido a doses aterradoras de adrenalina, de uma maneira inteligente e sem saídas fáceis. O que agrada o espectador tradicional e o atípico. Na segunda metade, a trama é que está no foco, assim como o desenvolvimento dos personagens em uma parte mais verborrágica, ainda que nem um pouco tediosa. O espectador atípico sai ganhando aqui, mas o tradicional já está seduzido mesmo.
Não que a segunda parte não tenha sequências de ação de tirar o fôlego. Inclusive o ator sueco Michael Nkvist, da série “Os homens que não amavam as mulheres” original, está excelente no papel do vilão inexpugnável, que não quer destruir o mundo por ambição, mas – pasmem – por idealismo. A cena final no estacionamento de luxo, em que o McGuffin – a desculpa para a ação acontecer – é uma pasta andarilha que percorre caminhos absurdos, pelo chão, pelo alto, etc. é brilhante. Nkvist demonstra um passo firme em sua carreira hollywoodiana, diferente da belíssima e enigmática Noomi Rapace, também de “Os homens...”, que não teve a mesma sorte, completamente deslocada em “Sherlock Holmes – Jogo das sombras”. O vilão que o ator sueco dá vida compõe uma nemesis perfeita ao Ethan Hunt.
O fecho com a discussão da equipe à mesa, em que todos os pontos nos is são colocados, é genial e só se torna viável dentro dessa renovada, embora com gosto de retorno ao velho, estrutura fílmica. A pergunta que fica ao final é, haverá missão que supere a aqui assistida no próximo filme? Haverá tarefa mais impossível que desativar um missil nuclear já disparado e em plena trajetória para a cidade de São Francisco? E mais ainda, existirá tarefa mais inexequível do que fazer um filme de socos e pontapés, trilha alta e muitas peripécias, com pouquissimas explosões, menos sangue ainda e respeitar a inteligência do espectador? Brad Bird e J. J. Abrams provam que sim. Cruise aproveita e espera o próximo blockbuster de papo pro ar, superfeliz. Que venha a próxima missão!!

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A denúncia da ambição e crueldade humanas na obra-prima de Miasaki

O que é uma princesa? Melhor dizendo, o que é uma imagem de uma princesa? Em relação a cultura ocidental, na qual a imagem eurocêntrica ocupou mesmo os mais ínfimos espaços, a princesa provavelmente está relacionada a outras imagens, como monarcas, castelos, coroas, quem sabe séquitos e belos vestidos (e penteados). Mas o que esperar de uma princesa em um filme de Hayao Miasaki, gênio absoluto da animação japonesa? Possivelmente, algumas das sutilezas das obras de Miasaki se perderão para sempre diante de nossos olhos ocidentais. Afinal, suas imagens não são realizadas para nós e muito menos a partir de padrões visuais semelhantes aos nossos. Por isso mesmo, nosso acesso a seu mundo é, infelizmente, sempre deficitário, mesmo para o mais aficcionado e especializado dos espectadores da cultura japonesa. Essas sensações são, à primeria vista, reforçadas quando “A Princesa Mononoke” (Mononoke Hime, JAP, 1997) nos bombardeia até nos embriagar com suas imagens.
Exibido recentemente pela HBO em um festival dedicado a carreira do cineasta japonês, o filme é um desestabilizante encontro espectador-imagem e promove uma revolução em nossas pobres expectativas ocidentais. Primeiro, a princesa do título só aparecerá na metade dos 130 minutos do filme. Antes o enredo se concentrará em uma distante aldeia de camponeses que enfrenta um deus enfurecido na forma de um javali gigante (!). Nessa ocasião, o jovem herdeiro daquele clã será amaldiçoado, aparentemente sem chances de reverter o seu terrível destino: agonizar devido a doença a devorar seus ossos. Como única tentativa para sobreviver, o sereno e resignado herói parte para as terras do mais extremo leste, de onde o deus viera, na busca de um antídoto que, em realidade, sequer sabe se existe. É lá que, após muitas peripécias, inclusive o encontro com belos elementais da floresta, samurais mal intencionados e um sacerdote de intenções dúbias, que Mononoke surgirá. Sua primeira aparição é um choque por si só, seu rosto ensanguentado após sugar a ferida de uma deusa loba, a fim de salvar aquela que é sua mãe adotiva. Os deuses lobos, em extinção (!!) devido a ocupação da floresta pelos homens são agressivos e impiedosos e sua missão é evitar a destruição final da floresta. Para isso, investem periodica e inutilmente contra os trabalhadores de uma fábrica de fundição de ferro, cuja existência trará consequências desastrosas para o meio-ambiente.
Percebemos os mesmos elementos de outros filmes de Miasaki, a denúncia da destruição do meio-ambiente (como em Meu vizinho Totoro, Nausicaa e Ponyo) e a entrada em um mundo mágico onde as regras são outras e humanos e seres mágicos convivem conflituosamente (A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado). Mas nesse filme em questão, o poder de alguns desses elementos alcança um sofisticado patamar. A ambivalência dos personagens, por exemplo, comum em outros exemplares da carreira de Miasaki, encontra um ápice na fortíssima personagem feminina, Lady Eboshi, dona da casa de fundição. Espécie de Fausto de saias, sua ambição e força de espírito são incontroláveis, contribuindo de maneira irreversível para que a trama avance para um desfecho caótico. A alegoria em relação à sanha destrutiva do homem em relação ao meio ambiente também é elevada a nona potência pela criação de um mundo onde nem os deuses estão imunes ao desejo de destruição humana. Inclusive, a caça do Deus-veado, o elegante e misterioso elemental-mor da floresta, híbrido típico de Miasaki, metade Gamo, metade não-sei-o-quê, com um sábio e sereno rosto que lembra o de um velho, é o McGuffin da trama. A decapitação e a consequente captura da cabeça do deus garante ao seu portador a imortalidade. Antiga ambição fáustica humana, transformar tudo a sua volta, mesmo que para isso precise destruir, e viver para sempre, sobrevivendo ao próprio caos transformador que ele mesmo perpetra, elevando o homem a categoria das coisas imutáveis. Como representado na alegoria do troféu em forma de cabeça divina, que permitiria-lhe colocar-se acima da natureza e dos próprios deuses.
Mononoke e o “príncipe” camponês Ashitaka, ele uma espécie de mediador universal entre o mundo dos homens e o mundo dos deuseus e florestas, idealizado e nobre, como não poderia deixar de ser, se unirão nessa batalha de proporções épicas. Embora os lados que defendem estejam sempre a ponto de se imiscuir e em realidade o espectador não saiba em determinados momentos para quem torcer. A inocência, determinação e doçura de Mononoke roubam a cena após a sua primeira aparição, mesmo que, em parte do tempo, seu rosto esteja coberto por uma temível máscara, que simboliza a sua parte animal, que ela quer mais evidente, deixando-a mais próxima da natureza que da humanidade. Personagem trágica e extremamente forte, de maneira similar, aliás, às outras personagens femininas, guarda a peculiaridade fatal de estar no meio do caminho entre o natural e o humano não sendo totalmente aceita nem por um, nem pelo outro. O que está sintetizado na frase: “Oh, tão bela e horrível princesa lobo”, pronunciada por sua mãe, a Deusa-lobo, que fala com voz de uma sábia anciã e que usará o último suspiro de sua espécie para destruir os desejos humanos, de preferência estraçalhando qualquer um que atravesse seu caminho.
Um intricado jogo de xadrez que embaralha, ao ponto da exaustão, as regras do jogo à medida que os lances são realizados até um final, no mínimo, apoteótico, Princesa Mononoke é uma obra-prima da animação adulta cuja complexidade, nós, ocidentais, só podemos arranhar. As suas imagens, como de outras obras-primas do Animê, como Akira (JAP, 1987), tentam sempre nos fugir, seja pela sua estranheza ou o seu enigma, e temos que simplesmente agarrá-las, nem que seja para cairmos estupefatos diante suas “belas e horríveis” paisagens, jogos visuais, personagens e alegorias. Viva, portanto, Hayao Miasaki!!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Infectadas e inexpressivas - Contágio em seu desfile de estrelas decepciona

Um desfile de astros, um diretor cult, um tema de relevância. Com essa receita, Contágio (Contagion, EUA, 2011), pretende ser um marco no realismo cinematográfico ao tratar do tema, de grande apelo emocional, do vírus que se torna uma epidemia mundial. O tema não é exatamente novo, uma vez que A Peste de Albert Camus (publicado na década de 1940) já tinha oferecido uma ficção com semelhante mote. Ou mesmo Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, adaptado, com muitas críticas negativas, para o cinema por Fernando Meirelles. Mas, se há um diferencial no filme de Steve Soderbergh em relação às mencionadas abordagens, está justamente na idéia de criar de maneira fiel e verossímil, até mesmo com respeito aos limites da investigação científica, a dramática realidade que se instalará se algo assim ocorrer. A doença, em Contágio, não é uma alegoria, seja de um mundo ameaçado ou de um mundo em decadência, como seus predecessores, mas o imaginar estritamente realista do que aconteceria com a humanidade se uma epidemia de tal porte se alastrasse.
Entretanto, necessário alertar, o filme falha miseravelmente em realizar essa proposta. Primeiro, pela escolha desproposital de um elenco de astros. Um casting de desconhecidos competentes, ao invés de um de estrelas, combinaria muito melhor com a proposta do realismo semi-documental em que o roteiro parece apostar. O que teria, é certo, muito menos apelo comercial. E que deixaria, de quebra, alguns diálogos mais entendiantes do que já são. Um exemplo mortal é aquele que explica longamente como o vírus se associa a células saudáveis, perolado com descrições de como “morcego errado” e o “porco errado” se encontraram (blergh!!). Entretanto, ao chamar nomes de peso para o elenco, o filme “assegura” as bilheterias, mas incide em um erro grave: dilui a proposta séria e política em um enlatado-catástrofe muito mais próximo de um filme no estilo incêndio-terremoto-naufrágio-em-que-gente-famosa-morre-ou-ao-menos-chega-bem-pertinho, da década de 1970.
Pelo início que se deseja impactante em que um dos grandes astros tomba levado pelo vírus, com direito à expressão de morte e olhos vidrados –  enquadrado, não poderia deixar de ser, por um close meticuloso - e a autópsia crua, percebe-se uma premissa. O problema é que a única necessidade dramática que justifica essa cena é o pressuposto de que o espectador vá, em seguida, se perguntar: “nossa se mataram fulano assim, então qualquer um pode morrer”. Então, o roteiro segue se baseando na frágil e apelativa expectativa: quem será o próximo grande astro a morrer? Matt Damon? Katie Winslet? Marion Cotillard? Jude Law? Lawrence Fishburne? (Se bem que a questão melhor para esse será – ele é um grande astro?). Convenhamos, para retomar em um ponto da argumentação inicial, apelar assim às emoções mais baixas do espectador não é definitivamente a abordagem mais realista de um tema sério como esse pode adotar.
O filme falha também onde tantos outros brilham ao tratar do mesmo topos (principalmente os citados Camus, Saramago e até o criticado Meirelles). Soderbergh, cuja estética orgulha-se em assumir em suas películas um ar entre o retrô e o cinema B (vide o sério “Traffic” e o bobo “Onze homens e um segredo”), fracassa retumbantemente em criar qualquer forma de crítica mais ampla. Os personagens são certinhos demais, exemplos de bom-mocismo e de boas ações. Até quando ferem algum príncipio ético, o fazem motivados por excelentes razões, como ajudar o pai moribundo ou avisar antecipadamente um ente querido de que a cidade será evacuada. O filme parece empurrar uma mensagem que deixaria gurus de auto-ajuda ruborizados. Afinal, em momentos díficeis os bons sentimentos humanos irão prevalecer através da responsabiliade que os cidadãos de bem têm em relação aqueles que deles dependem. Esquece-se que a força do humanismo de um Saramago (para não entrar no mérito do filme de Meirelles) está em mostrar as piores baixezas que os seres humanos são capazes em momentos de crise. Isso não como crítica ao gênero humano em si, mas como alerta do caminho que potencialmente a humanidade pode trilhar. Só em acreditar que as pessoas – no caso leitores ou espectadores - podem dar atenção a um alerta como esse, o que, quem sabe, viria a alterar sua probabilidade de ocorrência, já demonstra uma alta fé na humanidade. O filme em questão, porém, contenta-se em depositar todas as ações negativas em anônimos, sem personalidade, que atacam um caminhão de distribuição de alimentos, por exemplo. Mas que, exatamente por não serem personagens de verdade, não demonstram a ação clara e definida da humanidade, para qual a crítica se dirigiria. Nesse sentido, o potencial crítico do filme também se dilui, já que a doença e o caos que se segue se manifestam sem que se visualize os agentes de fato responsáveis, dando-lhes voz e personalidade. Por isso, o laboratório que guarda os vírus de doenças raras ao final (uma potencial bomba-relógio) não soa como uma grande crítica ao modo como a ciência e os governos lidam com as doenças. Ou a predileção por populações de primeiro mundo para um possível remédio, explorado na subtrama de Cottilard. Afinal, nenhum personagem definido aparece organizando a ação, logo a crítica ecoa no vácuo, seja das instituições transindividuais, sem nome, seja nas burocracias dos protocolos científicos, aparentemente sem origem definida.
Por essa razão, um dos únicos personagens que não são “bons moços” na trama torna-se o centro das atenções. É o caricato jornalista-blogueiro (em um dos diálogos mais interessantes da trama, mais um quase-astro, no caso, Elliot Gould, joga em sua cara: “Blog não é jornalismo, é grafite com pontuação” kkk), vivido por um Jude Law de ar sujo e dentes tortos. Se há uma imagem icônica neste longa é o rosto de Law nos cartazes espalhados pela cidade decadente e cheia de lixo nas ruas. Nele, um cartoon com tons expressionistas da face do jornalista traz a incrição “profeta” logo abaixo. O personagem promove a teoria da conspiração gratuita, instiga o pânico na população e espetaculariza a doença, assim galgando fama a partir da desgraça do próximo. Ainda que padeça do mal das caricaturas, é uma crítica nada sutil aos tempos de jornalismos tuítados – e seus respectivos profetismos tecnológicos - que nós vivemos.
Mas o personagen também não encontra força, talvez pela sua superficialidade, típica de seu estilo de personagem, afinal, ele é só um tipo. Ou talvez pela sucessão de astros do elenco, em relação aos quais a linha dramática vê-se obrigada a multiplicar-se para dar atenção (o personagem de Marion Cotillard some de maneira inexplicável por quase a metade do filme). Centrar o enredo no jornalista mau-caráter (como em Montanha dos Sete Abutres, do imortal Billy Wilder), possivelmente geraria um filme muito mais interessante e permitiria a abordagem em relação ao personagem sair do superficial, potencializando o efeito crítico da história. Permitiria a trama, da mesma forma, sair do moralismo generalizado em relação às ações humanas. Basta dizer que o único outro personagem que comete algum ato anti-ético entre os “protagonistas” morre de maneira terrível logo no início do filme (“quem manda trair o marido e ainda com a descaração de ser só por prazer, toma!” kkkk).
É desse personagem também a brincadeira visual mais interessante do filme. Quando por meio de uma câmera fotográfica digital os inocentes instantâneos de uma viagem ao Oriente (sempre ele, oh terrível “Oriente”), o espectador descobre, quase que como uma verdade segredada entre a narrativa e a platéia do cinema, a origem do vírus. Um momento inocente de aperto de mãos entre culturas, capturado em uma foto digital, é o início de uma hecatombe. A imagem paralisada se torna o ícone de um mundo à beira do desastre, onde até o positivo gesto de amizade intercultural é um prenúncio do apocalipse. Mas isso já é perto do final, é tarde para salvar o roteiro, a pressa para que o filme termine já ligou seu sinal vermelho longos dez minutos antes. Uma boa idéia, diluída na inexpressividade generalizada.
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Nov 2021
A pandemia de fato veio e o filme parecia antecipar muita coisa. O texto, escrito em 2012, soa bastante atual. Por isso, resolvi republicá-lo. O filme continua, é claro, ruim. Mas foi campeão de assistidas (ou seria melhor, visualizações, em um vocabulário "up to date") durante a pandemia do covid.