quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Infectadas e inexpressivas - Contágio em seu desfile de estrelas decepciona

Um desfile de astros, um diretor cult, um tema de relevância. Com essa receita, Contágio (Contagion, EUA, 2011), pretende ser um marco no realismo cinematográfico ao tratar do tema, de grande apelo emocional, do vírus que se torna uma epidemia mundial. O tema não é exatamente novo, uma vez que A Peste de Albert Camus (publicado na década de 1940) já tinha oferecido uma ficção com semelhante mote. Ou mesmo Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, adaptado, com muitas críticas negativas, para o cinema por Fernando Meirelles. Mas, se há um diferencial no filme de Steve Soderbergh em relação às mencionadas abordagens, está justamente na idéia de criar de maneira fiel e verossímil, até mesmo com respeito aos limites da investigação científica, a dramática realidade que se instalará se algo assim ocorrer. A doença, em Contágio, não é uma alegoria, seja de um mundo ameaçado ou de um mundo em decadência, como seus predecessores, mas o imaginar estritamente realista do que aconteceria com a humanidade se uma epidemia de tal porte se alastrasse.
Entretanto, necessário alertar, o filme falha miseravelmente em realizar essa proposta. Primeiro, pela escolha desproposital de um elenco de astros. Um casting de desconhecidos competentes, ao invés de um de estrelas, combinaria muito melhor com a proposta do realismo semi-documental em que o roteiro parece apostar. O que teria, é certo, muito menos apelo comercial. E que deixaria, de quebra, alguns diálogos mais entendiantes do que já são. Um exemplo mortal é aquele que explica longamente como o vírus se associa a células saudáveis, perolado com descrições de como “morcego errado” e o “porco errado” se encontraram (blergh!!). Entretanto, ao chamar nomes de peso para o elenco, o filme “assegura” as bilheterias, mas incide em um erro grave: dilui a proposta séria e política em um enlatado-catástrofe muito mais próximo de um filme no estilo incêndio-terremoto-naufrágio-em-que-gente-famosa-morre-ou-ao-menos-chega-bem-pertinho, da década de 1970.
Pelo início que se deseja impactante em que um dos grandes astros tomba levado pelo vírus, com direito à expressão de morte e olhos vidrados –  enquadrado, não poderia deixar de ser, por um close meticuloso - e a autópsia crua, percebe-se uma premissa. O problema é que a única necessidade dramática que justifica essa cena é o pressuposto de que o espectador vá, em seguida, se perguntar: “nossa se mataram fulano assim, então qualquer um pode morrer”. Então, o roteiro segue se baseando na frágil e apelativa expectativa: quem será o próximo grande astro a morrer? Matt Damon? Katie Winslet? Marion Cotillard? Jude Law? Lawrence Fishburne? (Se bem que a questão melhor para esse será – ele é um grande astro?). Convenhamos, para retomar em um ponto da argumentação inicial, apelar assim às emoções mais baixas do espectador não é definitivamente a abordagem mais realista de um tema sério como esse pode adotar.
O filme falha também onde tantos outros brilham ao tratar do mesmo topos (principalmente os citados Camus, Saramago e até o criticado Meirelles). Soderbergh, cuja estética orgulha-se em assumir em suas películas um ar entre o retrô e o cinema B (vide o sério “Traffic” e o bobo “Onze homens e um segredo”), fracassa retumbantemente em criar qualquer forma de crítica mais ampla. Os personagens são certinhos demais, exemplos de bom-mocismo e de boas ações. Até quando ferem algum príncipio ético, o fazem motivados por excelentes razões, como ajudar o pai moribundo ou avisar antecipadamente um ente querido de que a cidade será evacuada. O filme parece empurrar uma mensagem que deixaria gurus de auto-ajuda ruborizados. Afinal, em momentos díficeis os bons sentimentos humanos irão prevalecer através da responsabiliade que os cidadãos de bem têm em relação aqueles que deles dependem. Esquece-se que a força do humanismo de um Saramago (para não entrar no mérito do filme de Meirelles) está em mostrar as piores baixezas que os seres humanos são capazes em momentos de crise. Isso não como crítica ao gênero humano em si, mas como alerta do caminho que potencialmente a humanidade pode trilhar. Só em acreditar que as pessoas – no caso leitores ou espectadores - podem dar atenção a um alerta como esse, o que, quem sabe, viria a alterar sua probabilidade de ocorrência, já demonstra uma alta fé na humanidade. O filme em questão, porém, contenta-se em depositar todas as ações negativas em anônimos, sem personalidade, que atacam um caminhão de distribuição de alimentos, por exemplo. Mas que, exatamente por não serem personagens de verdade, não demonstram a ação clara e definida da humanidade, para qual a crítica se dirigiria. Nesse sentido, o potencial crítico do filme também se dilui, já que a doença e o caos que se segue se manifestam sem que se visualize os agentes de fato responsáveis, dando-lhes voz e personalidade. Por isso, o laboratório que guarda os vírus de doenças raras ao final (uma potencial bomba-relógio) não soa como uma grande crítica ao modo como a ciência e os governos lidam com as doenças. Ou a predileção por populações de primeiro mundo para um possível remédio, explorado na subtrama de Cottilard. Afinal, nenhum personagem definido aparece organizando a ação, logo a crítica ecoa no vácuo, seja das instituições transindividuais, sem nome, seja nas burocracias dos protocolos científicos, aparentemente sem origem definida.
Por essa razão, um dos únicos personagens que não são “bons moços” na trama torna-se o centro das atenções. É o caricato jornalista-blogueiro (em um dos diálogos mais interessantes da trama, mais um quase-astro, no caso, Elliot Gould, joga em sua cara: “Blog não é jornalismo, é grafite com pontuação” kkk), vivido por um Jude Law de ar sujo e dentes tortos. Se há uma imagem icônica neste longa é o rosto de Law nos cartazes espalhados pela cidade decadente e cheia de lixo nas ruas. Nele, um cartoon com tons expressionistas da face do jornalista traz a incrição “profeta” logo abaixo. O personagem promove a teoria da conspiração gratuita, instiga o pânico na população e espetaculariza a doença, assim galgando fama a partir da desgraça do próximo. Ainda que padeça do mal das caricaturas, é uma crítica nada sutil aos tempos de jornalismos tuítados – e seus respectivos profetismos tecnológicos - que nós vivemos.
Mas o personagen também não encontra força, talvez pela sua superficialidade, típica de seu estilo de personagem, afinal, ele é só um tipo. Ou talvez pela sucessão de astros do elenco, em relação aos quais a linha dramática vê-se obrigada a multiplicar-se para dar atenção (o personagem de Marion Cotillard some de maneira inexplicável por quase a metade do filme). Centrar o enredo no jornalista mau-caráter (como em Montanha dos Sete Abutres, do imortal Billy Wilder), possivelmente geraria um filme muito mais interessante e permitiria a abordagem em relação ao personagem sair do superficial, potencializando o efeito crítico da história. Permitiria a trama, da mesma forma, sair do moralismo generalizado em relação às ações humanas. Basta dizer que o único outro personagem que comete algum ato anti-ético entre os “protagonistas” morre de maneira terrível logo no início do filme (“quem manda trair o marido e ainda com a descaração de ser só por prazer, toma!” kkkk).
É desse personagem também a brincadeira visual mais interessante do filme. Quando por meio de uma câmera fotográfica digital os inocentes instantâneos de uma viagem ao Oriente (sempre ele, oh terrível “Oriente”), o espectador descobre, quase que como uma verdade segredada entre a narrativa e a platéia do cinema, a origem do vírus. Um momento inocente de aperto de mãos entre culturas, capturado em uma foto digital, é o início de uma hecatombe. A imagem paralisada se torna o ícone de um mundo à beira do desastre, onde até o positivo gesto de amizade intercultural é um prenúncio do apocalipse. Mas isso já é perto do final, é tarde para salvar o roteiro, a pressa para que o filme termine já ligou seu sinal vermelho longos dez minutos antes. Uma boa idéia, diluída na inexpressividade generalizada.
*** 
Nov 2021
A pandemia de fato veio e o filme parecia antecipar muita coisa. O texto, escrito em 2012, soa bastante atual. Por isso, resolvi republicá-lo. O filme continua, é claro, ruim. Mas foi campeão de assistidas (ou seria melhor, visualizações, em um vocabulário "up to date") durante a pandemia do covid.

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