terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A sede de aventuras de Spielberg encontra em Tintim uma nova aposta

Uma homenagem com pleno frescor e algumas doses de ironia. Assim soa “As Aventuras de Tintim” (The adventures of Tintim: the secret of Unicorne, EUA, 2011), a animação que inaugura a entrada de Steven Spielberg na técnica de captura de movimento dos atores. Tentada, sem muito eficácia, por Robert Zemeckis (Expresso Polar, Beowulf), o recurso encontra uma consecução bem-sucedida nessa adaptação dos quadrinhos de Hergé para o cinema. E é justamente, o quadrinista belga o grande homenageado por esse filme, em que Spielberg não perde a chance, naturalmente, de se auto-homenagear.
O longa já valeria a pena simplesmente por sua sequência inicial. Os créditos, praticamente um curta independente, são excelentes. No decorrer do desfile tradicional dos nomes, as figuras icônicas ganham vida com poesia e a leveza dos movimentos corporais que roubarão a cena durante o resto do filme nas proezas físicas de Jamie Bell (Billy Elliot, ING, 2000). De maneira semelhante a “Prenda-me se for capaz”, do mesmo Spielberg, que usa um recurso semelhante, os créditos são uma obra-prima a parte. Mas, podemos incluir nessa magistral sequência a primeira piada visual, quando em uma feira, o Tintim vivido por Bell tem seu retrato desenhado por um artista de rua e, voilá, a sua fiel gravura é a materialização dos desenhos de Hergé. Além disso, ao fundo, a riqueza da galeria de personagens somados em décadas de álbuns da hq está pendurada em fileiras formando um grande painel para deleite dos fãs. As homenagens, é claro, não param por aí.
À medida que a narrativa avança, o filme vai se tornando, porém, mais o estilo em que o próprio Spielberg já tinha desenvolvido para interpretar histórias a la Tintim, na série Indiana Jones. A série do arqueólogo mais famoso do cinema, em realidade, não foi inspirada em Hergé, mas ambos - Tintim e Indiana - são resultados da mesma fonte: os seriados de aventura colonialistas da década de 1930. Mas, como já especulavam tanto Spielberg quanto o próprio Hergé, antes deste falecer, o estilo das aventuras de Indiana se adequam perfeitamente às peripécias de Tintim. É como se a estrutura de suas aventuras, na promiscuidade usual da cultura de massa, fossem ligados na carne. Uma estrutura modular ou episódica, em que vários momentos climáticos se sucedem ininterruptamente; os cenários diversos onde a ação se dá, em geral, belas paisagens do “terceiro mundo” – curiosidade, o termo é usado no filme em um anacronismo óbvio, já que a denominação só seria criada em 1955, anos depois da época onde se passa a história; coadjuvantes cômicos de humor e caráter dúbios, etc.
Os personagens principais, contudo, apresentam diferenças evidentes. Apesar dos malabarismos corporais e da engenhosidade pragmática dos “civilizados” que possibilitam a ambos escapar mesmo da mais intricada enrascada, o que não teria sucesso não fossem os inverossímeis golpes de sorte sucessivos, o sedutor arqueólogo se afasta do Tintim de Hergé. O anti-herói que marcou Harrison Ford, Ulisses dos entre-guerras, mestre do ardil, contrasta com o jornalista-detetive politicamente correto ao extremo e exemplo de perfeição de caráter, além de celibatário (!). O que foi preservado fielmente na adaptação de Spielberg. Chega a ser indigesto ao espectador torcer – e se identificar com tal Sr. Perfeição – por isso, é essencial a figura do Capitão Haddock. Alcóolatra, boca-suja e brigão, Haddock é o coadjuvante perfeito, cuja personalidade se tornou indissociável do próprio Tintim. Elemento fundamental para alquimia dar certo e o espectador ser captado. Mas, não nos enganemos, Tintim e Indiana são representantes da cultura pop com um parentesco mais ancestral. Os dois são heróis brancos do colonialismo, dispostos a usar os países e personagens “não-civilizados” como cenário e moldura para suas jornadas que, em geral, sempre confirmam os estereótipos de valorização da cultura ocidental, frente ao exótico e “engraçado”, nem por isso menos “bárbaro”, mundo oriental.
Uma sofisticação visual excepcional atravessa toda essa premissa. Os cenários, detalhísticos e exuberantes, levam a perfeição o estilo Hergé (personagens caricatos – cenários caprichados), o que a, ainda que divertida, série televisiva em animação tradicional, não conseguia. As transições visuais também são um show à parte. De uma sequência para outra, há inusitadas sacadas visuais em que aquela de maior destaque ocorre em pleno deserto. Uma aparente miragem de um grande navio a vela – o Licorne do título original – avança sobre as dunas, que longo se convertem em gigantescas ondas em meio a tempestade. É a apresentação em termos visuais de um vigoroso flashback. Belíssimo. O humor corpóreo dos policiais Dupont e Dupont também é mantido, embora suavizado. Nos quadrinhos, há praticamente uma gag por página para esses coadjuvantes. Louvável, é a manutenção da importância de Milu, o cãozinho fiel do herói, responsável por grandes lances de humor e aventura, preservados no filme. Impossível pensar Tintim sem as artimanhas desse adorável personagem. A necessidade estrutural de Milu para a narrativa funcionar, inclusive, foi o principal motivo que levou Spielberg a não realizar uma adaptação live-action de Hergé e adiar por mais de vinte anos a consecução do projeto.
Os vários detalhes pesca-fã espalhados pelo cenário, que remetem a outras aventuras do personagem, aliam-se a sequências estonteantes de ação. Nelas, Spielberg se auto-ironiza o tempo todo. Simultaneamente, tenta tirar o fôlego do espectador, em uma espiral cada vez mais intensa. O que, no entanto, nem sempre é bem-sucedido. Algumas sequências são divertidas pelo exagero óbvio – como aquela em Tintim deve conseguir uma chave em meio a uma porção de brutamontes sonolentos -, outras são apenas exageradas (como o duelo de “espadas”, feito com guindastes das docas). Mas há pelo menos uma sequência imbatível em seu virtuosismo. É o longo plano-sequência de perseguição, com o consequente estouro da represa. Nele, Tintim, Haddock e Milu precisam arrancar um mapa do tesouro das mãos dos vilões. Só uma desculpa, evidentemente, para uma nova sucessão de piruetas. Uma diferença agora, a sequência inteirinha se desenvolve sem cortes, em um longo travelling, cuja sincronização possivelmente seria impossível em um filme live-action. O cúmulo da sofisticação é que há alguns cortes disfarçados, emulando as limitações técnicas (e humanas) de um filme de película tradicional. Divertidíssima, engenhosa e impressionante, é, sem dúvida, a melhor sequência de ação do filme. Talvez uma das melhores que Spielberg dirigiu desde “Prenda-me se for capaz” (Catch me if you can, EUA, 2002).
Não tão eficiente é a sequência de ação final, anticlimática, que deixa o sabor desagradável na boca, a sensação de que o melhor já ficou para trás. Nela, só uma última auto-paródia merece ser comentada. A sequência icônica em que Indiana Jones, de Os Caçadores de Arca Perdida (The raiders of the lost ark, 1981) enfrenta um hábil espadachim oriental, que demonstra seu talento com a arma, cultivado por anos de treinamento árduo, antes de morrer abatido por um mísero tiro da pistola do herói, é homenageada. A sequência até hoje rende linhas e mais linhas de analistas que a encaram como representação icônica do massacre cruel realizado pelo pragmatismo ocidental frente à beleza das artes orientais. Em Tintim, o Capitão Haddock substitui Indy e a arma de fogo do herói é ironicamente substituída por... garrafas de uísque. Mais uma representação de herói branco que não sabe perder, embora agora a ironia chegue a ser involuntariamente caústica.
Há, certamente, quem se canse das brincadeiras visuais do filme, dos excessos rocambolescos, ou acuse a gratuidade de sequências inteiras. Talvez isso tudo seja verdade. Mas, Tintim do Spielberg pede para ser consumido com olhos de puro deleite e, não pode faltar para isso também doses cavalares de nostalgia. Se juntar, então, um pouco de ironia auto-louvatória, teremos uma fórmula perfeita para apreciar um espetáculo que se quer apenas visual. Que fala mais aos esfíncteres – citando Hitchcock – do que a mente.