terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Um gatilho que dispara no vazio - a franquia Sherlock patina

A continuação de um blockbuster vem se mostrando algo cada vez mais temerário. Nos longínquos anos 80, existia uma regra, embora forçada como a maioria delas: “a continuação é sempre inferior ao original”. Hoje, após sucessos de crítica e público como Senhor dos anéis – Duas torres, Shrek 2 e Batman - Cavaleiro das trevas, para ficar só nos exemplos mais – como podemos dizer? - movimentados financeiramente, mostram que diferente do se dizia, é, sim, possível superar o primeiro filme. Fazer uma continuação com mais qualidade que o longa inicial necessitaria "apenas" de uma dose cavalar de originalidade, aqui entendida como capacidade de recauchutar velhos elementos, e igualmente partes gigantes de intensidade. Tudo tem que ser magnãnimo e emocionante, só que em um grau maior que o antecessor.
Para seguir essa fórmula, a continuação de um sucesso em Hollywood em geral sofre de megalomania. E, às vezes, essa mania de “querer ser maior que seu par” resulta em fracasso. O problema é que a pressão é tanta, do público, dos bastidores, etc. que algumas das segundas partes das franquias escorregam feio. Gerou-se, assim, dessa verdadeira obsessão em fazer o espectador esquecer a aventura anterior logo na primeira cena, verdadeiros monstros nos últimos anos. Piratas do Caribe 2 e Homem de Ferro 2 são só alguns exemplos. Neles, o descarte dos elementos do original só deixam os longas inaugurais ainda mais insuperáveis. E, infelizmente, mais um caso de fracasso exemplar em dar continuidade a uma série é o de “Sherlock Holmes – Jogo de sombras” (Sherlock Holmes – Game of shadows, EUA, 2012). Só que de um modo peculiar.
O primeiro filme foi uma agradável experiência do cinema de entrenimento: ironia, sarcasmo, cenas de ação estonteantes, efeitos interessantes e uma marcante trilha sonora (de Hans Zimmer, sempre genial!) foram os ingredientes de uma rentável adaptação de um clássico. Apesar da irritação dos puristas, as aventuras do detetive criado por Sir Arthur Conan Doyle ganharam uma nova roupagem, dinâmica e interessante para as novas gerações, cumprindo o que os produtores prometiam. Na direção, um sortudo Guy Ritchie, que após êxitos do início da carreira (Jogos, Trapaças & dois canos fumegantes, Lock, Stock and two smoking barrels, ING, 1998, por exemplo) tinha assumido produções pífias e quase foi lançado ao ostracismo. Ritchie impôs um ritmo excepcional ao filme, sendo inegavelmente um dos responsáveis por seu estrondo nas bilheterias. Simultaneamente, não abriu mão das suas idéias, meio caminho entre avant-garde e a estética do vídeo, abusando de movimentos de câmera vertiginosos e cortes de imagem abruptos, além de saltos no interior da narrativa e flashbacks sem sobreaviso. O primeiro filme, portanto, mereceu de fato o título de arrasa-quarteirão.
O mesmo não acontece com essa sequência. Primeiramente, não reage frente ao pêndulo sobre a cabeça de qualquer continuação, não há mais sabor de novidade. Todo o frescor visual da Inglaterra vitoriana steampunk do filme anterior se perdeu e chegou até mesmo a converter-se em uma Londres simplesmente caótica e escura. As cenas de ação contentam-se na repetição dos esquemas e truques visuais de seu predecessor dando a inescapável sensação de dejà vu. Volta aqui, inclusive, um recurso típico dos quadrinhos – presente quando o Batman de Frank Miller, por exemplo, antecipa os passos dos seus combatentes, em um raciocínio lógico-dedutivo contando sempre com o melhor lance do adversário, como no xadrez. A idéia era transformar isso em uma marca da série. Infelizmente consegue ser apenas “mais do mesmo”. Um outro exemplo a citar é a sequência da explosão nas docas, repetida aqui em uma fuga diante dos temíveis canhões alemães pré-primeira guerra. Os mesmos silvos de balas, câmeras em still, slow motion e o zumbido ensurdecedor estão ali. É a melhor cena de ação do filme, mas falta algo... Ah, já sei, é a novidade.
O roteiro também deixa a desejar. O problema é mais evidente no tratamento dado a coadjuvante Zimsa, uma cigana vivida pela excelente Noomi Rapace, do filme sueco “Os Homens que não amavam as mulheres”. Se na série baseada nos romances de Stieg Larssom, ela é enigmática e sensual, aqui ela só é insossa. Responsabilidade exclusiva do roteiro, que deixou a personagem completamente deslocada o filme todo. Uma bela inútil, incapaz de substituir a altura as artimanhas de Irene Adler, personagem interpretado por Rachel McAdams, o interesse amoroso de Holmes do Sherlock de 2009. Infelizmente, sem maiores justificativas, Irene é assassinada logo nas primeiras sequências de “Jogo das sombras”. Se essa eliminação inexplicável de uma personagem tão interessante é uma tentativa de romper com o desenvolvimento da história anterior, suspendendo e redirecionando as expectativas, falha miseravelmente. E, diante da inepcia da cigana de Rapace, a ácida McAdams faz muita falta.
Mas o filme guarda alguns trunfos. Os principais são os personagens diretamente adaptados da literatura de Doyle. Um deles é Mycroft Holmes, o irmão mais esperto de Sherlock Holmes, aparece aqui na pele do sofisticado Stephen Fry. E, embora o nível de sarcasmo e ironia mordaz já seja bastante alto desde o episódio anterior, o ator consegue ser um divertimento a mais. O outro, é claro, é James Moriarty, vivido magistralmente por Jared Harris. Grande vilão do universo sherlockiano, o genial arquiinimigo do detetive possibilita o conflito mais cerebral do cinema de entretenimento dos últimos 30 anos. Como, uma vez mais, em uma partida de xadrez, até de modo literal, os dois, Sherlock e Moriarty, antecipam seus melhores lances o tempo todo, dando vida a um conflito que já se tornou clássico em várias mídias, na literatura, no cinema e nos quadrinhos.
E é nisso, porém, que está o grande problema. As platéias novas dificilmente se empolgarão com o jogo de pistas falsas e raciocínios premonitórios, quase sobrenaturais, dos dois personagens, calcados diretamente da literatura e dos filmes clássicos, preferindo algo mais visceral. As platéias antigas, que já têm uma pulga atrás da orelha com este Holmes “pós-moderno”, não serão atraídas por uma condução desses conflitos competente - mas não genial, é preciso dizer de passagem - , quando têm disponível em DVD os embates vivicados por Basil Rathborne, o mais representativo dos Sherlocks entre os cinéfilos. E até as metáforas enxadrísticas são óbvias demais, ainda que divertida para os fãs das histórias de Doyle, ao menos aqueles mais desprendidos. Nesse sentido, na ausência de um final-surpresa, um whodunit (quem matou) ou coisa que o valha, o filme não consegue cativar o espectador por muito tempo e, infelizmente, as disputas intelectuais Holmes-Moriarty na sua versão videoclipe encontrarão poucos admiradores.
Desse modo, não se agrada nem os jovens, nem os fãs antigos. E o filme fracassa como continuação. Nem mesmo o cada vez mais notório fascínio, quase fetichista, do diretor por armas prenderá os famintos por ação. De que adianta que cada gatilho disparado seja uma festa de fogos de artíficio com faiscas, supercloses em engrenagens e roldanas em slow motion? O celebrado orgasmo formal dessas cenas soa vazio se o elemento humano e conceitual que faz com que torçamos pelos protagonistas nas cenas de ação é deficitário. Cenas como a do assassino cossaco dentro do cassino simplesmente não funcionam. Nesse sentido, como representante do gênero ação, ainda que vez por outra mostre-se razoável (a sequência dos canhões alemães, por exemplo), o filme sofre em comparação ao primeiro, e, é preciso admitir, também fracassa nesse quesito. Repetitivo e estéril nas cenas de adrenalina, talvez o filme ainda empolgue pelo humor. Sequências inteiras de ação, em realidade, são dedicadas apenas ao humor, beira-se até a gratuidade. Um exemplo é a primeira de todas, quando Downey Jr. é obrigado a enfrentar uma gangue de biltres sozinho. Ou a cena do trem, com Downey travestido em roupas femininas e maquiagem borrada Mas, mesmo nesse ponto, balanço final não é totalmente positivo e esse novo Sherlock é definitivamente um filme desequilibrado.
Para felicidade dos detratores da franquia, que nunca toparam um Watson tão ativo quanto o de Jude Law, preferindo a versão preguiçosa e bonachona dos filmes clássicos. Muito menos, um Holmes de Downey Jr. tão ocupado em parecer um super-herói nas lutas ou um astro de rock precisando de uma rehab nas demais cenas. E muito menos, aceitam de bom grado as insinuações homoeróticas entre Watson e Holmes, cada vez mais evidentes, ao menos nesse roteiro. “Sherlock Holmes” pode até sobreviver como franquia em um terceiro ou quarto episódios, mas, para isso, será preciso uma reformulação urgente. Certamente, ela virá, isso é inevitável. Talvez com o corte de algumas cabeças, - te cuida, Guy Ritchie! -  mas virá!

Nenhum comentário:

Postar um comentário